sexta-feira, 20 de junho de 2014

sábado à noite

A gente tava meio boladinho porque tava escurecendo e só teria umas lanterninhas nem tão boas assim pra se ver. Sexta tinha sido meio ok, porque a gente tava meio no barato e não tinha aparecido nenhuma carta, então a gente ainda tava de boa com a ideia de que a gente tava sozinho ali e era isso aí. Agora não, agora dava um medo considerável. A L. sempre cegando com a luz da testa quando a gente olhava pro rosto dela. O escuro parecia uma boca aberta enorme. Além de onde nossos ruídos pareciam alcançar, continuávamos a ouvir as vozes. Se emudecíamos, tínhamos certeza que ouvíamos as vozes. Os zumbidos. Então não calávamos a boca. Podíamos só gemer ou falar coisas idiotas do tipo “eu na verdade não gosto de almoçar, realmente acho que um café da manhã forte é algo a ser respeitado. Almoço pra mim é algo totalmente secundário, e se eu não passasse mal sem comer nada ao longo do dia, a parada de uma comidinha a cada três horas, eu não comeria, juro que não comeria na hora do almoço. Mas é assim a nossa vida.” “Pois é” “Eu também acho” “Ah não, eu gosto de almoçar” “Eu também” etc.

As luzes acenderam. Do nada. Maria falou champanhe. Marco Polo falou festa porra. Era estranho que acendessem. Sexta e o que vivemos de sábado até ali não deixaram qualquer dúvida de que não tinha energia na casa. Meio bizarro isso. Achei que não tinha energia. Marco Polo falou que na opinião dele foda-se: festa porra bota uma música nessa merda. Não tem energia. Como não, olha a luz aí na tua cara. Ficou burra? Maria entornou um pouco de cachaça na boca, se engasgou e cuspiu um bocado no chão. Cadê minha champanhe, caralho. Maria segura a onda aí. Céu tava rindo. Vê se não faz mais merda. Que que eu fiz ?, não fiz nada, não vou fazer mais merda, o que eu posso fazer é merda e não mais merda o eu que posso fazer ainda é merda, mas ainda falta pra eu fazer mais merda então não me fode, não fode. L. tá com o computador, nem precisa de energia. Formou.

L. foi atrás do computador. Já escutaram Black Merda? O quê? Black Merda. Olha só. Eles escutam The Psych Funk of Black Merda. L. põe primeiro Darn Well. Maria diz caralho, caraaaaaalho. O Marco diz alguma merda do tipo que isso é música pra trepar. Céu diz que ele tá sendo meio babaca. Então se chega à conclusão de que seria bom se a gente desse uma trégua na onda de ficar insinuando papo de sexo o tempo inteiro porque ficar reduzindo qualquer tópico possível a isso, sem que de fato role um empenho no sentido de concretizar alguma coisa nesse sentido, parece simplesmente chato, parece ser uma insistência no mínimo maçante numa ideia abstrata de sexo referenciada em porra nenhuma de concreto, o que, pensando na experiência do sexo, é meio estranho, já que o sexo é uma parada nada metafórica no que diz respeito a uma certa interpenetração intersubjetiva e fora de um regime discursivo em sentindo estrito, apesar de ser possível, se a gente quiser muito, a gente entrar numa possivelmente chata discussão semiótica a respeito de algumas posições e coisas assim. Então Marco diz que a gente pode tirar a roupa. Concorda-se que ele não entendeu ou não concordou com o que foi dito. E que talvez seja melhor ignorar porque uma hora ele desiste de encher o saco e dorme. Eu vou pro jardim, vou encher a porra da cara, ficar pelado de pau duro, quem sair eu como. Ele vai saindo com o que sobrou de cachaça e tirando a roupa. Ele grita lá de fora que é pra levar a câmera. Maria, Céu e L. se olham. Maria dá uma vomitadinha.

sábado, 17 de maio de 2014

sonho de marco

Bom, foi por causa de um sonho. Eu costumava ter um sonho que se repetia várias vezes. Era mais pra um pesadelo, pra ser honesto. Começou logo depois que eu li uma poesia esquisita, eu comecei a ter esse sonho, pesadelo, né... A poesia falava de terra, de bicho apodrecendo, coisas assim, tinha um verso que era sobre a teta da terra... é, da teta da terra mesmo, tipo, mãe-terra amamentando. Isso. Bom, eu li essa poesia, não sei de quem é, e fiquei meio assustado, ela falava muitas coisas estranhas, falava de doenças venéreas lá pelo meio, só coisas assim, nojentas e pútridas e doentes, sabe? E daí comecei a ter esse sonho, pesadelo, né, que estou ali naquele mato próximo, naquele terreno em volta, e estou só de cueca, com frio e descalço em cima daquela terra suja pra caralho que tem ali, com medo de pegar alguma doença terrível, leptospirose, peste, bicho-do-pé, diarreia, não sei, essas coisas de mendigo, então eu vou até a casa, têm uns brilhos que aparecem aqui e ali e eu sei que não devo ligar pra eles, que eles estão ali pra me enganar, é o mundo em volta tentando fingir alguma coisa que eu não devo dar atenção, ignorar e seguir reto até a casa - e então eu vejo o palacete, imenso na noite, está de noite. Eu caminho até lá, ainda com frio, mas suando, sabe quando você joga futebol em dia frio e aí meio que está com calor por conta do exercício, mas se tira a roupa fica com frio por causa do vento no suor? Era essa a sensação. E eu sigo até o palacete, e entro, e vejo que o lugar é imenso mesmo, um palácio mesmo, mas todo abandonado. E eu sei que tenho que subir a escada, e eu subo, não sei quantos andares eu subo, e quando chego num andar lá, não sei qual, não pensava nisso no sonho, eu vejo a maria, e ela não parece me ver, está de costas, andando com um pé na frente do outro, como se se equilibrasse numa corda, mas está só de calcinha, ela não veste mais nada, está só de calcinha, que aliás é uma calcinha de renda que eu já vi ela usando, meio azul-piscina, enfim, ela está andando assim de costas e não me vê e eu não quero que ela me veja, porque quero aproveitar aquele momento e porque ela iria brigar comigo, ficar puta, sei lá, e fico assim meio parado, olhando pra ela seminua andando olhando pros pés, e, num certo momento, eu percebo que ela já percebeu que eu estou ali, ela não chegou a olhar pra mim, mas já percebeu que eu estou ali, e nesse exato momento ela para de andar daquele jeito e vai pra um quarto no fundo, então eu sigo ela, porque parece, do jeito que ela vai, que ela está meio me chamando, ou só porque é o que eu quero fazer mesmo. Mas quando chego no quarto não vejo ela. A cama está vazia, as cortinas fechadas, o quarto tem cheiro forte de mofo, a cortina está muito mofada, o chão está comido pelos cupins, cheio de farelo de madeira, pisar nele parece andar em cima da sujeira de anos, e está repleto de revistas largadas, roupas e panos velhos, num dos cantos restos de comida: feijão com arroz e frango, tudo velho, apodrecendo em cima da madeira há anos, cheirando mal, cheio de vermes compridos andando e no meio dessa comida velha e podre tem um olho. Um olho humano muito nojento. Eu começo a ficar com medo, o cheiro está mais forte, tudo parece estar mofado, e eu começo a ouvir vozes que vem de trás da porta do banheiro, mas a porta está trancada, eu nem preciso tentar abrir porque sei que está trancada, não dá pra entender o que as vozes falam, é uma voz só, pra ser mais exato, mas não sei o que ela fala, fala tudo embolado, não dá pra entender, eu suo muito e sinto que pisei numa poça, olho e vejo que tem água vindo por debaixo da porta do banheiro, como quando eu era criança e brincava com a céu de encher o banheiro, alagava tudo e nossos pais só percebiam quando a água passava por debaixo da porta, daí eles batiam na porta e falavam pra fechar a água se não ia ter que parar de tomar banho, e depois a gente até aprendeu a colocar o tapete no vão da porta do banheiro pra vedar por mais tempo; e então eu fico com medo pra caralho, começo a me sentir mal, me sentir meio sem roupa só de cueca e percebo que a maria está na cama, debaixo do lençol, meio escondida, acho que ela não sabe que eu entrei no quarto no fim das contas, eu entro sorrateiramente por debaixo dos lençóis sem ela me ver e vou devagar encaixando por trás dela, tipo de conchinha, sabe, e tenho uma sensação dupla de imenso prazer e de um pouco de nojo, porque a cama está imunda, dá pra sentir a poeira debaixo da coberta, os ácaros, os bichos, uma coisa úmida mais embaixo, mas eu não me importo e vou me encaixando mais com a maria, passando o braço por baixo dela e o outro por cima, abraçando na altura dos peitos, claro, né, e fico com um tesão fodido, ela não se move muito, mas quando se move é pra se acomodar melhor, então beleza, e daí começo a tirar a calcinha dela e ela se vira pra me beijar e não é mais a maria, é a céu e eu não sei o que fazer, porque meio que não parece importante na hora, mas com certeza meu interesse pela situação diminuí drasticamente e todo o desconforto da sujeira da cama, do fedor do lugar, dos bichos mortos nojentos, da água que vai melando todo o chão, da voz sibilante, do mofo que cresce na cortina, essas coisas todas parecem bem mais graves agora e me atrapalham bem mais em focar na situação, a céu vem a toda pra cima de mim e eu deixo, mas começo a engasgar, ela fica com uma cara meio jocosa, como quem diz, não vai dar conta?, como quem duvida, ou como quem saca que eu vou broxar, e eu percebo que estou broxando, mas tipo, não tem a ver com falta de virilidade, macheza, nada, é só porque tá tudo errado, aquilo me incomoda, mas a céu sobe por cima de mim e eu não consigo me levantar, nem sombra de tesão, e eu me sinto seriamente asfixiado, todo aquele mofo, e cheiro de cigarro, e ela insiste em meio que me sufocar pra eu sentir mais forte o orgasmo, mas eu não quero mais aquilo e a gente meio que começa a brigar, e eu sou mais forte, claro, então eu viro por cima e inverto a situação e começo a sufocar ela e pego um travesseiro e sufoco ela pra valer, ela se debate, eu estou suando a vera, é muito esforço, e eu sei que se ela morrer não é de verdade, sabe, tipo, eu meio que sei que é um sonho, embora eu não pense isso na hora, mas sinto que a morte não é tão grave quanto morrer de verdade, e então não me importo, eu sufoco ela até a morte e ela se debate, me bate, e eu espero ela parar de se mexer, e, quando ela para eu tiro o travesseiro. Mas não é ela que está debaixo. É essa menina. L.
Sempre que eu sonho isso, eu meio que já sei o que vai acontecer, como se seguisse um mesmo roteiro que eu já conheço mas é inevitável, e eu meio que quero segui-lo até o fim, principalmente a parte do deitar com a maria, e eu meio que fico olhando pra ela incessantemente pra ela não virar a céu sem que eu veja, mas, de uma forma ou de outra, ela sempre vira, e sempre termina do mesmo jeito.
Mas isso não quer dizer nada, né?

No Embaço

Eu tava na casa da Céu e do Marco Polo. Ele e a Maria tinham descido pra comprar bebida. Preciso de outros amigos. Faltou luz. Os dois tinham saído há uns vinte minutos. Mas depois que a luz faltou eles demoraram ainda um bom tempo. Ficamos eu e Céu no escuro. Ela disse que ia catar uma lanterna. Emprestei meu celular pra ela ver por onde andava. Voltou com uma lanterna acesa. Devolveu meu celular. Ela perguntou se eu já tinha escutado Dirty Projectors. Eu falei que não. Ela disse que eles tinham um disco com a Bjork que era muito bom e que ia botar pra eu ouvir. Lembrei a ela que não tinha energia. Ela falou que tinha um disc man. Pensei caralho alguém ainda tem isso. Ela me botou pra ouvir. Beautiful Mother, que é a que ela mais gosta junto com uma outra aí, a penúltima. É meio bonita e meio bizarra: tem a ver com a Bjork mesmo, eu digo. Ela diz que não é música dela. Eu digo ah. Ela então põe a mão no meu joelho. Estamos sentadas, uma de frente pra outra e ela põe a mão no meu joelho. O polegar roça indo e vindo. Penso ih caralho. Estou olhando pra baixo. A música vai acabando. Ela me chama. Levanto a cabeça devagar. A lanterna está no lugar do seu rosto. Só vejo um clarãozinho que apaga seu rosto e me dói os olhos. Fico muda ainda que quase fale. O rumor do fone na base do pescoço. Ela não diz nada. É o polegar roçando, o silêncio, o rosto apagado e a dor nos olhos. Isso dura algum tempo. Ultrapassa o constrangimento e vira outra coisa. A luz volta, coisas estalam, sons voltam a vibrar. A cena de repente é ridícula e inofensiva. Eu rio. Ela ri com algum atraso. Apaga a lanterna e a deixa na cômoda. Maria e Marco Polo aparecem, com Smirnoff e suco. Ficaram presos no elevador. Marco faz alguma piada sugerindo que eles talvez tenham trepado no elevador. Maria o empurra rindo e diz ah para. Eu deixo claro que me interesso mais no disco que neles. Céu ainda ri de alguma coisa.

domingo, 11 de maio de 2014

Am I Really Dying? (II)

Em casa um dia chovia bem forte. Minha mãe não sabia que eu não tinha saído então faria sentido ela chegando me ver encharcada da chuva. De início nada fiz, constatado isso. Então me vesti, pus meus tênis e fui pra baixo do chuveiro. Luz aguda. Virei a torneira.

A água fria vinha e eu tirava os cabelos dos olhos, espalhava-os na cabeça. Tentava manter os olhos abertos. Virei a torneira. Pus as mãos na barra e torci a blusa. A água espatifou no chão do box. Torci.

Saí do box e apertei o interruptor. Agora sim. Virei a torneira. Tirei os cabelos dos olhos. O queixo tremia. Torci a blusa. Agora mais água por todo canto. Torci. Puxei a blusa até a nuca. Capuz em boca e olhos.

Chorei. Se me lembro. Água por toda parte, difícil saber de onde. Virei a torneira.

Bati a porta da frente. Esperei minha mãe. Diria que esqueci minha chave. Torci a blusa e fiz uma poça farta. Funda como não adivinharia.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Am I Really Dying? (I)

CLOV_Me disseram, O amor é isso que você está vendo, isso mesmo, veja bem agora como (...) é fácil. Me disseram, A amizade é isso que você está vendo, nem mais, nem menos, não precisa continuar procurando. Me disseram, O lugar é aqui, pare, levante a cabeça e repare quanto esplendor. Quanta ordem! Me disseram, Vamos, você não é um animal, pense sobre essas coisas e vai ver como tudo ficará claro. E simples!(...)

Fim de Partida, Samuel Beckett

vi o Amor numa foto. Ideologicamente circunscrito sem Eros nu.

Contra o vidro ela fora vestido dela vivo escurecido da água da chuva a cor viva do vestido encharcada se rosa então agora tipo um rubro a água levando abaixo as cores do rosto, supõe-se uma beleza: qualquer coisa da ordem do vejam esta mulher incontrolável, catástrofe, cataclismo, erupção, depressão - isto porque do lado de cá, mais perto de quem está vendo, está este cara uma barba nada a ver bem vestido cara de: eu na realidade acho que não sei lidar com isso: não sei lidar com isso: quer dizer: com esta mulher - eu racional ela emotiva - aí você pensa peraí isso não faz nenhum sentido. não se aproximar não querer saber. caga na latinha sem dar na vista bem vestido o cara é bonito então ninguém liga pro que ele pensa ou pra que ele pense, contanto que em algum momento possam chupá-lo, comê-lo, etc.

A Laura Palmer disse “é tão terrível a facilidade que eu tenho em fazer os homens gostarem de mim” e Foster Wallace que é deprimente quando você descobre o quão uma pessoa que você admira é fácil de manipular.

E a vergonha de nela ter me visto umas vezes já: de eu já estive aí num desses lugares nisso que eu achava de certo modo lindo e algo levado por uma sensação amor: era isso amor: alguma música no fundo ou à frente e eu privada de ter que pensar a respeito do que fosse agora já nenhuma reflexão e somente isso. A merda é que na não reflexão deixava essa infecção ideológica adentrar: a ferida adensava alargava abria mais e eu numa boa ouvindo ou dizendo eu te amo ou variações um sistema econômico mundial integrador ao qual eu me punha indiferente pra poder dizer eu te amo em paz achando assim que também eu de certa forma fazia frente: indiferença fingida: o amor é seria de algum poder contra (o axioma de 67 dos Beatles é das coisas mais reacionárias que existem) mas que essa matança intrínseca a tudo esta carniça feita coração das coisas está no amor é amor um amor está em tudo está em inspirar expirar virar as costas é adorá-la como quem já a adorava adorará – a primeira e última concessão.

Estou cansada. Quanto mais nojo tenho dessas coisas é porque sei o quanto grudaram a mim. Podemos foder e discutir. Não é que será mais simples. É que o verbo ser será de mais difícil emprego. Terrível a beleza que não torce as vísceras. Tétrica a que é agradável.

Tenho quinze anos, dei primeiro há dois. Quem sabe tivesse me refreado, houvesse visto Beleza Roubada antes. Agora não me trinco tanto em ter que dar já. Antes urgia, mas não mais. O que rolar rolou e é isso aí. E se o Marco Polo entrar numa, ele que se foda. A Maria tá aí. Eu não.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Foto

É uma cena estúpida mas é isso aí.
Há dois do lado de dentro e dois do lado de fora.

Os do lado de dentro fazem assim:
                                                   Ele está com uma câmera no parapeito da janela na direção dos dois do lado de fora. Alguma concentração, ou porque sabe muito bem o que quer ou porque não faz ideia. Ela está ao seu lado e conversa.

É sua?
O quê?
A câmera.
É.

Ela se cala.
Ele retoma pra que não necessitem da companhia um do outro.

Você não vai sair na foto?
Eu?
É.
Você vai?
Eu vou, vou coisar o timer.
Vai ter que sair correndo.
É, mas cê vai sair?, tem que ir agora.
Agora?
É.
Tá.

Os dois se calam.
Veem somente o que é enquadrado pela janela, a saber:
                                                                                   Ele lá fora segura um vaso vinho pesado com uma planta de caule extenso e folhas largas. Ela lá fora fala alguma coisa pra ele, seja o de fora ou o de dentro. Ela está numa posição ruim, a cabeça pende entre as coxas e o sangue sobe ao cérebro, aliás, desce ao cérebro. Ela de fora não registra não ser ouvida pelo de dentro e o de fora move pouco os músculos da face por achar que está sempre na iminência da foto e portanto não fica claro se ele registra o que ela disse ou se está simplesmente fazendo outra coisa qualquer quando acontece de por exemplo a sua mandíbula se manifestar.

É você que tem uma casa de praia?
Tenho o quê?
Não sei se é você que tem.
O quê?
Casa de praia. É que falaram que você tem, é você que tem?
Ah é, mais ou menos.
Como mais ou menos?
Não é na praia, é perto da praia.
Mas isso é casa de praia.
É porque tem casa que é na praia e a minha não é.
Mas é casa de praia.
É tipo você ter uma casa na Barata Ribeiro e falar que é casa de praia.
Claro que não.
É, sim.
Não é. Nada a ver.
Tá.
Porque é tipo férias.
Quê?
Férias. Tipo: casa de praia = férias! Sacou?
Veraneio?
Hã?
Veraneio.
É, tipo casa no meio do mato ou na serra. Sítio, fazenda.
Sei.

Novo breve silêncio, amargo e/mas ligeiramente conciliatório. Ela retoma.

É no estado do Rio?
O quê?
Sua casa.
Não.
É onde?
Espírito Santo.
Ué, tem praia lá?
Tem, cê vai sair na foto?
Vou, tem que ir agora?
Já era pra ter ido.

Os do lado de fora eu já falei mais ou menos.

Mas eles fazem assim:
                                Ele os braços já começando a tremer pelo esforço de segurar o vaso. Ele está fazendo isso porque acharam que ia ser uma ideia engraçada. Talvez até seja. Eu nem acho. Mas deve ser porque não participei de quando eles tiveram a ideia. Coisa meio quando tá todo mundo bêbado menos você. Todos devem de fato estar se divertindo, mas você tem certeza de que você não está. Fato é que está segurando durante muito tempo o vaso. Mas o faz com estoicismo, o rosto rígido e surpreendentemente inexpressivo. Assustadoramente, aliás. Ela se alterna em gritar para o lá de dentro e falar qualquer coisa em volume mais baixo para o de fora. Por conta da pose (está com as pernas bem separadas e a cabeça entre as coxas, as mãos se apoiam no chão, mas a ideia é levantá-las no momento da foto, ou seja, ela não supõe como ele ali fora que a foto está prestes a ser tirada, mas sim que há algo protelando o momento decisivo e que haverá tempo para se preparar devidamente e sem pressa), sua voz sai esquisita.

pequena lista de neuroses urbanas

- mudar de calçada quando avistar um homem com mais de 1,80m
- mudar de calçada quando avistar uma mulher com menos de 1,40m
- trancar e destrancar a porta 4 vezes
- deixar as portas sempre trancadas
- nunca pular um degrau
- evitar fazer linhas diagonais andando na rua
- não passar embaixo de um pombo
- não passar em cima de bueiro
- não olhar nos olhos
- entre 23h40 e 00h01, não estar na rua
- comer o pão pelas bordas
- ficar parada enquanto a fita rebobina
- não ultrapassar a faixa amarela
- não fumar o último cigarro do maço
- nunca aceitar doce de estranhos
- nunca abrir a torneira da direita
- nunca se direcionar a alguém que falar russo sem antes pedir licença
- tapar os ouvidos se a música repetir o mesmo acorde por mais de 5 vezes
- limpar embaixo da unha todos os dias
- limpar atrás da porta todos os dias
- não atender ao interfone antes do segundo toque
- não atender ao telefone antes do segundo toque
- não encarar as pessoas da vitrine
- não sentar no banco alto do ônibus

domingo, 13 de abril de 2014

Da composição e da sede

Pude sentir a água nos meus pés, nas canelas, nas pernas até as panturrilhas.  De olhos fechados eu via toda aquela água, limpa e transparente. Eu via uma ou duas folhas verdes dançando a dança das águas. Eu ví aquela abelha na borda. O movimento dos meus pés gerava um movimento lá em baixo que subia e fazia bolhas na superfície. Ela refletia o céu e o chão. Uma vez alguém me disse que a água não tem cor, que ela reflete o que vê. Pude ver o vento quando ele criava forma na água e nas minhas pernas molhadas. Eu u vi quando soltei os cabelos, caídos nos ombros e eles foram junto com ele. Pus as mãos na água, fria, e passei nos cabelos e no rosto, descobri que a água também reflete o vento. Pensei em contar isso pra alguém. Mas. Eu vi refletidas ali as mãos, os braços, os cabelos, o tronco, mas não via o rosto, o rosto não, não conseguia ver, olhava com atenção mas o rosto me escapava. Na turbulência do vento, nas bolhas do pé.

Abro os olhos.

Eu vejo a piscina vazia, milhares e milhões e bilhões e incontáveis folhas no fundo. Alguns insetos mortos. Abelhas talvez. Eu vejo meus pés no ar. Solto os cabelos, que ficam caídos nos ombros, e só. O seco me molhou. A falta de água fora fez com que a minha água de dentro quisesse sair, pelos olhos, pela testa, pelos braços, pernas, pés, cabelos e sexo. Preciso dela, do seu reflexo, daquele rosto. Da calma que o molhado me trás. Sede. Acho que vou contar isso pra alguém.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Segui alguém


Saí da unirio levemente com presa. Mas ok. Precisava pegar o ônibus do metrô, o 513. Quando cheguei na praça que têm na frente da faculdade e consequentemente na frente do ponto de ônibus, vi o meu, o 513, no ponto. Comecei a correr, mas fui interrompida pela lembrança de ter pagado 20 reais para um amigo, dinheiro que estava devendo desde o carnaval, assim, eu não sabia se tinha dinheiro para o ônibus conexão, parei, continuei andando, só que mais lento. O ônibus foi. Eu tinha dinheiro. Fiquei ali por um tempo, sentindo que chegaria atrasada, mas ok. Talvez nem tanto, otimismo baby. Peguei o ônibus, ele abriu as portas antes de chegar a Mena Barreto, pois o transito por ali depois das 18:30 é, sério, impossivel. Andei até o metrô, e assim que passei da roleta o trem lá vinha, corri as escadas e entrei no vagão. Fui tranquila. Cheguei a estação Largo do Machado, onde desci e vi uma menina/mulher (mulher) descer também, de outro vagão. Eu estava indo para o teatro Cacilda Becker, teatro exclusivamente para apresentaçoes de dança. A mulher entrou na minha frente por uma questão de organização e só isso. subimos as escadas, e alí, bem alí pensei: parece que ela esta indo para o mesmo lugar que eu. Segui meu caminho normalmente, sem que a presença dela me afetasse ou me fizesse mudar de direção, a cada esquina ou virada eu ficava apreensiva pra saber se ela iria aonde eu esperava que fosse. Acho que a essa altura eu já estava seguindo ela, se ela mudasse de direção como eu poderia ir para o meu destino? Estava indo, agora, atrás daquela nuca onde a blusa fazia um V e o cabelo preso em coque deixava a mostra a pele. Seu jeito me pareceu de bailarina, talvez eu estivesse sendo influenciada pelo caminho e o destino, o meu destino. Continuamos. Se eu estou indo, e ela esta indo, eu estou a seguindo? Continuamos. Quando a porta do teatro começou a se aproximar senti que era decisivo, ou vai ou raxa, sei lá. Ela virou, entrou no teatro. Naquele momento parei de segui-la. Eramos duas mulheres/meninas andando até o hall.

ps: depois, em uma roda de ciranda nossos olhares se cruzaram. reconheci ela, de algum lugar.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Exterior I

"VELHO_(...) Creio que estava a ponto de me pedir algo; depois, não ousou e deixou-me
bruscamente. Mas só agora penso nisso...E eu não tinha percebido nada... Ela
sorriu como sorriem os que querem se calar ou têm medo de não serem compreendidos.
Esperar, para ela, parecia ser apenas sofrimento...seus olhos não estavam límpidos
e quase não me olharam..."

Interior, Maeterlinck

Matei afoito a formiga cuja picada na pélvis me acordou. Detesto quando faço isso. Explico. Estou deitado sobre a grama do quintal sob um sol consideravelmente forte e quando me movi pra matar a formiga, não só descobri outras sobre mim, e gemi e fui mais seco e menos trôpego, como meu corpo ardeu pela dobra da pele sobre pele pra tirar a bicha e as outras. Estou queimado parece agora de modo ridículo, rosa e dolorido só na face ventral. Visto apenas uma cueca. Não é das piores, o que torna a situação menos terrível. Reparando bem, não sei se é minha, o que suspende indefinidamente o efeito de não ser das piores.

Lembro-me de deitar ali, à noite. Mas não sozinho. Teria sido demais até mesmo pra mim. Estava muito quente, o céu sem nuvens, e resolvi deitar no quintal e olhar pra cima, as estrelas e tal, e chamei eles e acho que tinham algo mais importante pra fazer. Todos. Então de fato fiz isso. Fui deitar sozinho no quintal. Mas vestido, não teria tirado a roupa ali numa boa. Levei vodca numa jarrinha de cristal. Boa companhia. Até certo ponto pelo menos. Meu plano não era dormir ali. É isso que detesto quando faço: não saber que seguir o curso de uma ação implicará logo logo, caso não faça o que seja pra evitar, seguir o de outra completamente diferente. Quer dizer, ficar deitado olhando o céu negro e as estrelas estendido por horas quer dizer que eu estarei logo logo, caso não me levante e vá embora, deitado olhando apenas o céu claro e o sol e recebendo a irradiação solar alheia a que eu esteja ali por engano.

Veio alguém durante a noite. Estava escuro então não sei quem. Já dormia e acordei quando me despia a camisa, teve que estender meus braços acima da minha cabeça e o cocuruto bateu no solo gramado ao fim. Os pontos luminosos no negrume. Não distingui um rosto. Fechei os olhos para permanecer ignorado. Tirou minha bermuda, minha cueca. Deitou em cima de mim. E só. Dormi de novo.

Acordei com as formigas. Tirei de mim todas que achei enquanto vesti as roupas largadas perto. Dormira abaixo da janela da cozinha e agora ouvia sons de dentro. Água fervendo talvez para o café e refogavam já alguma coisa talvez portanto já perto do almoço e conversa em longas pausas. Moderadamente felizes. Fui com a jarra quase vazia mas contendo o bastante até a piscina. Enorme e sem água. Estava para dizer seca, mas não é bem o caso. É repleta de terra e porque chova quando chove e porque não raramente chova, fica úmida e pequenas plantas já surgem e um pequeno ecossistema já se forma ali. Bichos minúsculos. Isso se repete em vários outros pontos da casa. Fungos em infiltrações. Pendem meus pés da borda de pedra quente. Olho acima. Terrível deserto este céu sem nuvens. O calor aflitivo torna tal beleza jamais simples mas complexa. Vodca goela adentro como modo senão bom ao menos útil de não ser dragado por tão nada anódina beleza. Termino o gole, esvazio a jarra.

Agora a terra da piscina. Ah. Há outra coisa ali no fundo.

domingo, 30 de março de 2014

A morte

Se essa casa fosse minha eu mandava ladrilhar. Com pedras de brilhante, pedrinhas como aquelas dos sete anões, só pro meu amor poder morar.
Nessa casa tem um quarto, o chão é preto, de ardosia*. E lá dentro tudo o que se sente é solidão.
Dentro desse quarto dorme um anjo.
Um anjo que roubou meu coração.
Mas
Se roubou, se arrancou o meu coração, ele me deixou tão longe do meu amor.
Se arrancou, ou roubou, meu coração penso que lhe causei dor.
Mas




*ardósia é uma rocha sílico-argilosa formada pela transformação da argila sob grande pressão e temperatura, endurecida em finas lamelas.








sábado, 29 de março de 2014

A primeira vez que senti tesão por uma amiguinha.

Tinha 8 anos. Sei por conta de um método simples que eu mesmo desenvolvi que mistura várias aptidões que tenho. São elas: raciocino lógico, memória geográfica e praticidade imaterial (este nome não está registrado ainda, é uma espécie de "título teste" ou "nome de trabalho" para uma praticidade que tenho e que não achei ainda a maneira mais prática de definir). Mais tarde explicarei este meu método, noutra ocasião. O que importa agora é que não há dúvidas que eu tinha 8 anos de idade quando o que relatarei a seguir se deu. Exceto que o fato a ser relato a seguir tenha ocorrido as vésperas do ultimo bimestre escolar ou durante sua aplicação. Vamos a esta pequena narrativa pessoal. Eu acordei de um sonho que havia tido com a minha turma. Era o horário do recreio na escola de freiras em que estudávamos, estávamos todos numa espécie de julgamento, eu só via alguns mas sei que estávamos a turma inteira, eu não participava de nada, só olhava. Via tudo que acontecia e não era muita coisa que acontecia. O inconveniente é que fui lembrando do sonho durante o dia, conforme encontrava com as pessoas do sonho na vida é que eu lembrava de as tê-las visto há pouco quando eu ainda dormia, antes do café. Convém frisar isso porque muitas vezes tomei café ainda dormindo. Duas irmãs estavam no sonho. Eu as vi e lembrei. E fiquei constrangido. Porque estávamos todos nus no sonho que tive. Como éramos aos 8 anos. Sem pelos e sem maldade. Sem curvas e sem pudores. Mas embora no sonho eu não tivesse tido nenhuma reação de estranhamento, agora ao ver minhas amigas irmãs na vida, vestidas com o mesmo uniforme que eu, algo me esquentou a face e o corpo. Mais precisamente na região entre as coxas e o umbigo. Atentem que hoje eu sei que estes uniformes da escola de freiras em que estudávamos é o mais sem graça que já tive notícia e pude ver em toda minha vida de observação de uniformes de estudantes de todas as idades. Eu lembrei deste sonho por muitos anos. E até hoje tenho um certo respeito pelo que me provoca a presença de uma destas irmãs em mim. Somos amigos. Ela não sabe de nada. Nunca ficamos. Já estivemos a sós muitas vezes. Não fico pensando nela pelada, mas meu corpo e memória sabem, mesmo sem me contar a toda hora, que o que ela é faz parte do meu mais ancestral desejo.

Lista do que minha filha não pode fazer

Neste espaço era para ter uma lista do que minha filha não pode(ria) fazer. Mas não pude. Porque escrevi as coisas em pedacos de papel e os fotografei. Mas para que as fotos pudessem estar aqui eu precisaria ter uma coisa a que chamam aplicativo e, embora eu o tenha tentado baixar, há uma pendência em minha conta graças a "uma compra anterior". Meu cartão está estourado há três meses. Mas isso minha filha não pode considerar. A lista virá aqui. Como foto nos comentários, talvez. Vou tentar. Não sei se eu apresentaria esta lista com 5 coisas (seis na verdade, porque há uma subdivisão na coisa 4) para minha filha desse modo. Quero dizer, como uma lista. Não descarto a possibilidade de um blog para me comunicar com ela. Mas acho que a lista seria incutida aos poucos. Entre 0 e 6 meses. Como um mantra do subconsciente dela. Depois eu a ensinaria aos poucos a pensar que as coisas precisam ser do jeito que mais tarde eu vou propor. Gostaria que sua primeira palavra fosse "Sim". Nem papai, nem mamãe, nem neném. Mas sim. Queria que minha filha dissesse sim para tudo entre 0 e 40 meses. Depois disso não me importaria de negociar. Mas a essa altura eu já teria o argumento que ela havia dito sim para a maioria das coisas e que ficava feio mudar de ideia tão jovem. Não que eu aChe isso de verdade. Pelo contrário. Estou com o barão de itararé nesse quesito: feio não é mudar de ideias, feio é não ter ideias para mudar.


 ------------------
















sexta-feira, 28 de março de 2014

Sinucas e tacos

Era uma casa muito engraçada. Mas habitavam pessoas sérias. Que dão pausas. Não falam juntas porque o caos não é sério. Mas elas são. Sérias. Uma mesa de sinuca no meio da sala. Enorme. Mas as pessoas estavam muito preocupadas com o carpete. Porque carpete é coisa de gente séria.

DESCARGA

Descrever a casa é descrever um pouco de cada casa que conheço ou imagino. Abro a porta, sim tenho a chave, estou no banheiro. Começo a falar e um cara e outras duas caras entram, não no banheiro onde estou, no banheiro talvez de cada um. Algumas voltas pela casa, andamos em silêncio. Alguém cai e não é socorrido. Isso aconteceu algumas vezes. Já estou em outra parte da casa e aquela que caiu por último e ninguém ajudou, está sentada. Não ajudei porque estava preso no banheiro falando coisas sem sentido e nem sequer usei o vaso. Abro as cortinas e depois as janelas. Nada. Só aquela marca nos tacos no formato do carpete. Frequentemente as janelas eram abertas e o sol bronzeava em volta, queimando tudo e agora nem carpete existe, imagino. Ela precisa de ar e os outros dois falando sobre o carpete. Não há ventiladores no teto. Ela, a que caiu e ninguém socorreu, olha para cima e a única coisa que vê e sente é um cara soprando seu rosto. Eu ali, parado, soprando e toda aquela conversa circulando.  De repente silêncio. Parece que todos precisam de ar agora. Alguém descreveu a cozinha mas ninguém sabe chegar lá. Faço esforço para lembrar como cheguei  e encaro todos esperando resposta. Ela precisa de água e se demorar  vai derreter aqui.

Sobre cadeira, janela e sopro.

Sinto o vento. Nos meus olhos, passando pela testa, nos cabelos que começam o cabelo todo. Entrando pela boca. Nas maças do rosto. Me sinto com você. Ou sinto você. Não sei bem. Acho que eu estou cansada. Não de você. Fisicamente. O vento não me deixa levantar da cadeira. Será que eu fechei as janelas? De onde vem o vento? Pra onde o vento vai? Isso não importa. Me trás um copo d’agua? Não. Fica. Tudo bem. A leveza do vento e o peso do corpo. Meu corpo pesa. Sopra mais forte. Oi? Me levanto, saio do peso. Não vejo você. Vejo as raízes grossas, varias raízes que saem da terra sem peso. Como podem ir em direção ao céu? Céu e terra. Se misturam, viram um. Tronco. Folhas muitas, muitas. Alí! Olha! O vento. Me trás uma coca cola de maquina por favor.

terça-feira, 25 de março de 2014

Frank Silva (1950-1995), ele fez Twin Peaks. Olhar que rolou numa visão da Sarah Palmer.

Só uma hora aí que eu saquei que ela tava falando comigo porque quer dizer antes de sacar eu tava falando qualquer merda só pra não calar a boca e uma hora eu entendi que tinha alguém falando junto e às vezes falando nas pausas que eu fazia pra respirar porque eu ainda não tinha aprendido a como simplesmente falar sem parar e também evitar pronomes aliás evitar não, mas suprimir definitivamente, o que sempre terminava, quer dizer, falar pronomes terminava, por me localizar no tempo de maneira cronológica e no espaço e dar uma referência pra outra pessoa de por exemplo quem eu sou ou era ou gostaria de ser e eu desse modo assim ainda saía por aí dizendo aproximações tipo “eu” “ela” “nós” perguntava que horas eram e tudo o mais e ela percebi que tava falando comigo e de fato interessada em alguma coisa então dei a entender que entendia e comecei a deixar que ela falasse umas duas três palavras e aí eu ia e respondia alguma coisa, qualquer coisa. Às vezes ela não terminava e eu falava por cima dela quer dizer por cima da voz dela. Só então entendi o meu incômodo com aquela merda toda. Tava a outra lá toda desmaiada aliás ainda só descansando foi só depois que a gente soube que ela em algum momento desmaiou, ou melhor, então eu não sabia se ela tava ainda descansando ou já desmaiada ou desmaiando mas foda-se porque fosse como fosse ela tava lá na cadeira e o cara abanando ela e soprando o rosto dela quer dizer imagina só ela lá recebendo todo aquele hálito na cara ou imagine-se você lá sem sentidos ou perdendo os sentidos sem falar dos perdigotos garoando nos cílios lábios pálpebras e ele tava lá e ela tava lá e eu tava aqui e ela outra aqui comigo falando comigo. Ele olhou pra mim. Nós dois eu e ela aqui enfurnados no sofá. Um cheiro miserável de antigos habitantes quadrúpedes e de toda a saliva podre deles, a genitália pingando mijo e o cu com restos de merda pendurados ou amassados mas agora aos poucos o cheiro não só não mais incomodava como ficava cada vez mais difícil perceber que ele tava lá enfim como sempre é com cheiros você sabe. Sem falar do modo como invadia nossas roupas tanto as que a gente tava usando ou já tinha usado quanto as que a gente ainda ia usar porque afinal o cheiro é da casa. E ele olhou pra mim. De repente ele resolveu olhar pra mim. Aí fodeu. Daqueles olhares que nego resolve parar e começar a significar pra caralho entendeu do tipo pam se liga em como eu sou capaz de concentrar os meus olhos parados na tua cara e isso quer dizer que eu estou sendo muito intenso aqui na concentração o que quer dizer que eu quero dizer alguma coisa pra além ou aquém das palavras e aí você fica uau olha só fulano sendo intenso e tipo uou isso tá reverberando em mim de uma maneira realmente significativa e eu estou admirado e/ou com medo dessa porra toda e quem diria que fulano fosse capaz de tamanha intensidade e de um gesto tão intenso e de me causar tanta tensão intensa do tipo no meu corpo e não uma parada intelectualmente tensa mas um olhar concentrado e intenso que ficou mexendo nos meus intestinos quer dizer é claro que é muito cartesiana essa maneira de descrever a sensação mas você me entende agora e por hoje basta e essas merdas. Sem falar que puta que pariu não excluo a ideia de que ele teve um certo lapso de ficar doidão e se ele ficou de repente querendo significar tanta coisa é só porque ele sacou que tudo aquilo era grave e importante e resolveu aparentar gravidade e importância então deu aquela de ficar me olhando parado e intenso e antes que eu pudesse evitar eu tinha calado a boca por mais do que eu quereria e ela outra aqui já tava falando pra caralho querendo superar minha marca de falador de falação ininterrupta ou sei lá alguma porra dessa. A discussão era sobre o carpete, quando tinham tirado o carpete, ela falou que ainda havia carpete como se eu também não estivesse naquela porra daquela casa junto com ela e os outros dois pisando em piso de taco todas as porras daqueles dias sem nenhum carpete à vista sendo que o máximo indício de que algum dia tinha existido alguma coisa parecida com um carpete por ali era uma marca ou o que parecia ser uma marca aliás, uma diferença em primeiro lugar tonal deixada pelo suposto carpete de existência dúbia: tinha diferenças de cores, tons e texturas entre dois tipos de pedaços do piso: um mais claro e limpo e conservado e outro mais sujo e escuro. Aí eu fiquei dividido entre não vou contrariar maluco ou quem sabe o maluco seja eu e não tenha marca nenhuma ou isso que eu penso que seja marca é simplesmente outra coisa e tenha um carpete na minha cara e eu não esteja vendo ou foda-se vou discordar dela e quem sabe ocupar o tempo com essa discussão até quem sabe intrigante mas de todo modo inútil e grato por que o silêncio não apareça e não escorra pra dentro pelos poros suar de revés e paralise meu coração. Ou talvez lamentar que ele não seja capaz disso. A essa altura aquela lá já provavelmente desmaiada. Não é impossível que o hálito e o cuspe a tenham feito desmaiar se bem que você sabe ela é dessas que desmaia por qualquer merda acho que pelo menos três vezes desde que tamos aqui, pelo menos três vezes tornadas públicas, sem falar daquelas que talvez ela tenha sofrido mas não contou pra justamente não ser retratada como eu acabei de retratar, como sendo aquela que desmaia e tal. Acho que isso faz sentido. Faz pra você?

quarta-feira, 19 de março de 2014

§0

Meu nome era o que meus pais pretendiam fazer pra homenagear o meu avô. Ele não gostou disso porque tava vivo e porque na nossa religião quem tá vivo não pode ser homenageado, a não ser que morra, deixando, assim, de tá vivo, passando a tá morto, que na nossa religião é o estado de existência (que talvez se possa chamar não-existência é bem discutível e, diria, errado) por excelência de alguém homenageável.

Então meu avô não gostou nada da ideia de ser homenageado achando assim que tava implícita certa ideia de meus pais desejando a morte dele. Aí meus pais, assim como meu avô tinha essa questão idiota da religião, meus pais também tinham a deles que era de já que meu avô tava nessa pilha chata de não vou liberar meu nome pra vocês usarem, eles não resolveram, como todos pra quem eu contei isso concordaram que teria sido a coisa mais óbvia e razoável a ser feita, simplesmente falarem ok, ok e darem outro nome. Resolveram insistir.

Tinha uma parada de que eu seria o último filho da família, quer dizer, deles dois (porque era de se esperar que à época da reprodução da nossa geração, minha e do meus irmãos, a nossa prole poderia tranquilamente servir para homenagear meu então possivelmente morto avô. Mas meus pais não só não podiam esperar como deviam fazer eles mesmos agora. Se bem que pensando bem, seria ridículo se eles impusessem que algum de nós dos filhos botasse nos netos deles o nome do nosso avô. Aí nós é que brigaríamos com eles e nossos filhos homens seriam aqueles-que-não-tem-o-nome-do-bisavô, e nós, os-netos-que-não-homenagearam-o-avô), e aí eles queriam porque queriam homenagear o meu avô, o que, pra ser sincero, não vejo muito motivo, ele não é um velho extraordinário ou coisa parecida, mas um cara solitário, religioso e pouco simpático e nada de uma espécie de vida brilhante como uma contraparte compensatória dessa rabugice, do tipo quando falam que sei lá o Ibsen, por exemplo, era hiper ranzinza, mas né, era o Ibsen, então foda-se. Ou o Heráclito. Não, o meu avô era um dos vários de quem eu tava falando quando falava que família é uma merda.

Então quer dizer eu já vim ao mundo num meio duma merda escrota que nego quis botar na minha conta, já quiseram me botar no meio duma rixa maluca com o meu avô antes de eu sair do útero. O que me faz pensar que comigo ele talvez fosse ainda mais rabugento que o normal. Porque claro que os meus pais botaram o nome dele em mim. Isaac. Após todos os argumentos razoáveis e concessivos e diplomáticos eles poderiam simplesmente falar que eles iam fazer o que eles queriam e foda-se. Podem ter ameaçado ele de alguma coisa também, não sei. Não falávamos muito sobre isso. A não ser pra eles mostrarem como era importante lutar pelo que se acha que é certo e como meu avô não sabia o que tava fazendo, como era importante abalar esses enrijecimentos da religião e que ela imiscuía em todos, e sempre terminava num clima conciliatório de somos uma bela família esclarecida e amamos os nossos e homenageamos os patriarcas, e minha mãe acrescentava “até mesmo os rabugentos” e todos riam e o cachorro latia e recebia do meu pai tapinhas nas costelas e ele comentava que até o cachorro achava o vovô rabugento e mais uma vez todos riam. Ou seja, quando eu tive idade pra de fato estranhar tudo isso eu sabia que minha família tava para sempre perdida numa ego trip sinistra. Eu falava ok e ia pro meu quarto.

Agora, por que meu avô se demoveu da convicção dele é que eu não sei. Que aliás por ser de uma onda religiosa e tal nem era tão dele quando uma parada transcendente mesmo, do tipo “não sou eu que não quero, mas isso não pode acontecer de acordo com o que o judaísmo prescreve e eu tenho que providenciar para que isso não aconteça”. Aí eu encontrava com ele, ele encontrava comigo, parecia que eu era a promessa e a ameaça de morte iminente dele. Como se estar vivo já não bastasse.

Eu era duas pás de terra sobre meu avô. Uma: não importa o que ele deseja nem no que ele acredita, o que é dele está superado e será ignorado pelo filho e a mulher; duas: o neto, que ainda não necessariamente deseja aplacar qualquer ação ou vontade do avô, já é em si fruto da derrocada dessa tradição, supõem os pais, ignorável (mais por ser velha e ter que dar lugar ao que vem atrás porque inclusive atrapalha as direções desse novo troço que se anuncia do que por ser infundada ou má), ou seja, o neto, quer queira ou não, quer saiba ou não, existe sendo contra o avô. Eu, sendo a segunda, evocava a primeira e era as duas.

Claro que quando ele morreu de fato eu fiquei aliviado. Imagine como ele não ficou.

terça-feira, 18 de março de 2014

Trabalho. Trabalho com drogas. Forneço maconha para pessoas na Cantareira. O negócio com a maconha começou quando a galera, que filava um pouco da minha, começou a perguntar onde eu comprava. De um pequeno grupo de pessoas o negócio cresceu e hoje sou muito procurado na praça... principalmente a galera do futebol, com quem bato uma pelada. A pelada é quase uma desculpa. Chego, distribuo e “jogamos”. A parada de trabalhar assim é que negocio com pessoas de todos os tipos. Tem as pessoas que gostam de você, as que compram sem intimidades e as sem expressões. Tem as que não gostam de mim. Difícil saber, mas existem. Não tenho ideia de quem seja. Uma vez, caminhando para chegar na pelada rotineira, um “guardinha” desses que ficam coçando o rádio o dia todo, me parou e com um empurrão me jogou para dentro da guarita. Não disse nada, mas bateu muito, muito. A guarita era escura e tinha um buraco, onde entrava a luz de fora e por onde eu vi ele passar. Sentado no chão percebi que ele tinha esquecido o rádio. O buraco na parede era a certeza que ele não tinha voltado. Baixei as calças e esporrei no rádio. Achei engraçado a ideia. Ele colocaria o rádio no rosto.    

segunda-feira, 17 de março de 2014

Eu fui criada por minha tia, uma mulher negra dos dentes brancos, muito brancos. Meu primo, filho de minha tia também cresceu comigo. Meu irmão. Negro dos dentes brancos, muito brancos. Um dia, quando tinha uns doze anos, cheguei em casa e fui ao banheiro, foi quando percebi que tinham me crescido pentelhos. Logo que sai de lá comentei com meu primo pois sempre contávamos tudo um pro outro. Terminei de falar e ele começou a rir de mim e foi logo contando para minha tia que era negra dos dentes brancos, muito brancos. Criou-se então um grande rebuliço e as chacotas de família começaram. Em uma tarde de almoço, a mulher negra com dentes brancos, muito brancos, que era minha tia, comentou em alto e bom tom para toda a mesa a novidade que tinha me acontecido. Daquele jeito que todas as tias, da cor e dos dentes que fossem, sabem fazer  - “Ela já é uma mociiiiinha!”. Fiquei muito envergonhada com a atenção de todos os dentes brancos direcionada a mim. Tive vontade de arrancar todos os pentelhos recém-nascidos. Era muito nova para fazer depilação e tinha ouvido também que o pelo engrossava e coçava quando se usa gilete, então acabei não fazendo nada a respeito. 3 anos depois, meu primo, negro dos dentes brancos, muito brancos, finalmente veio me contar que também tinha lhe crescido pentelhos. 

domingo, 16 de março de 2014

1,01

- 8 quartos, sendo que num deles tinha aquela mesa que me lembrou uma que ficava no quarto da minha irmã naquele tempo antes da vizinha se jogar pela janela. Ou 9 quartos? Talvez um décimo ainda. Ponto cego. 10 quartos, todos vazios. Na sala, um amontoado de cadeiras e um pano velho jogado por cima. Tava todo mundo ali e mais alguém. Não sei quem. Quem a mais era que eu não sei quem, os outros eram os outros. Nós, quer dizer. Alguém que não era da gente - to confusa. você pode ligar pra minha mãe? - escuta, tinham duas cozinhas, não sei porquê. talvez antes fossem duas casas...ou talvez fossem duas casas juntas mesmo, quer dizer, ou posso tá misturando duas coisas. 5 quartos em duas casas, portanto, sendo assim. Ou nove, caso não fossem dez quartos no total, mas, ao contrário, nove, (quer dizer, nove não é o contrário de dez, mas...nove), então quatro quartos e meio em cada casa, talvez, faz sentido...o que isso tem a ver? - devia ter todo tipo de bicho na piscina, menos os aquáticos, aqueles azulejos não viam água há décadas - você pode me dar um copo d’água? - você só quer o resumo da ópera, né? é o seguinte: eu não sei que porra aconteceu. - Ah. - as cortinas arrebentaram quando a gente tentou abrir, tecido podre. o mofo subiu pelas paredes e inundava o teto com o mesmo cheiro que a carne embaixo da unha da minha avó inundava a minha infância.
(mofo em inglês é mildew aí como piada auto irônica eu quando vou falar de alguma coisa que eu quero fazer eu falo mildew vontade de fazer a tal da coisa querendo dizer que a minha vontade que teoricamente seria alguma coisa muito boa e motor de coisas e até orgânica é na verdade já desde o momento que eu falo, e talvez antes, já coberta por uma camada de mofo. A Lina me chama de niilista idiota decadente dos piores porque... sem falar que não leio nenhuma filosofia que diga a respeito só fico por aí fazendo análise combinatória de como falar mal mal das coisas, sejam elas eu, os outros, as coisas, ou a vida, tipo tudo, essas são as categorias né de tudo. Resultado é que eu não faço nem esse nem outros comentários parecidos na presença dela pra evitar tanto o olhar irritado dela como o meu confuso).

muitas mulheres quando você começa a falar. - Tava todo mundo junto e a Lu se separou do grupo? – Quem? Ah, a Luli. Você que tem que dizer pra gente o que tá acontecendo. - Será que você poderia me trazer um copo de água? - A gente achou que não ia ter luz nenhuma e levou uma penca de vela, mas tinha. - Não tinha luz. - A gente só acendeu a luz e entrou. - Foi um acidente, ninguém vai sentir falta daquela casa mesmo. Vão construir um prédio no lugar, uma garagem, um shopping, uma coisa escrota dessas. - Acho que alguém trancou a gente lá dentro. - Vocês já acharam a Lulu? - Será que você podia me dar um copo de água? - O calor invadiu o chão, como se tivesse carvão embaixo do taco. Dava pra ouvir-- Vocês acharam a Lola? O padrasto dela deve tá preocupado. – Padrasto?, quantos anos ela tem? - As chamas escalaram a videira do centro da casa. - Ela é amiga da minha irmã. A gente não se fala muito. - Lembro do cheiro, um escândalo. - Algum de vocês entrou naquela casa? Só a gente, né? Então por que você não acredita quando eu digo que morava alguém ali! - Chamas alpinistas. - Ela entrou correndo, com raiva, socou a parede. Tinha brigado com alguém. - Eu achava que a Lila tinha ido embora há muito tempo - Você já ouviu de perto o barulho que fogo vai quando tá mastigando os móveis? - Eu senti o cheiro da minha pele queimada, um escândalo. - Vai ou faz? - Alguém gritou. Eu não sei quem. - Tudo vira pó. - Essa é nova. - A casa. - Ah. - A videira pode crer a videira. - É a voz dela aqui do lado de fora? Parece a voz dela. - É importante ter e transmitir clareza. Não estou suficientemente interessado na sua relação com mulheres pra resolver não dar atenção ao incômodo que me causam esses consideráveis desvios ou essas ligeiramente longas digressões dentro do que você está tentando, eu espero e imagino, me contar de fato de fatos para apurarmos os fatos. Quero que você agora, de agora em diante pelo menos, não procure me dar a entender alguma coisa outra que não a coisa que você está dizendo, enquanto a diz, com indícios esparsos de alguma coisa que não interessa aos fatos a serem apurados e me diga de uma vez o que é que foi ou então o que é que você sabe caso o que você saiba não coincida com o que foi. - Mas é isso o que eu sei, menos ou mais complica. - Você tem o mesmo cheiro dela, bizarro. - Você pode pegar um copo de água pra mim? Preciso engolir uns remédios.

sábado, 8 de março de 2014

3.

- 8 quartos, sendo que num deles tinha aquela mesa que me lembrou uma que ficava no quarto da minha irmã naquele tempo antes da vizinha se jogar pela janela. Minto, isso foi antes da casa ser reformulada, antes da violência, quando chegaram as estacas de ferro que garantiriam a proteção e mais a frente, por questão de futuro mesmo, um elevador que comportasse cadeira de rodas. Mas ela já está recuperada. Ou 9 quartos? 10 quartos, todos vazios. Na sala, um amontoado de cadeiras e um pano velho jogado por cima. Muito pó. Ser pó. Tava todo mundo ali e mais alguém. Alguém na sauna. As empregadas, em dupla de duas, almoçavam na cozinha – não que a cozinha fizesse parte da casa.  Não sei quem. Alguém que não era da gente - tô cada vez mais confusa. Mas quero ajudar. Desculpa. Você pode ligar pra minha mãe? - escuta, tinham duas cozinhas, não sei porquê. Talvez antes fossem duas casas… o que isso tem a ver? - devia ter todo tipo de bicho na piscina, menos os aquáticos. Muitas moedas, abandonadas desde a infância – jogávamos moedas e mergulhávamos de olhos fechados para procurá-las. Não tô te enrolando. Não tô de fantasia. É que já não consigo desvencilhar a memória da narrativa. Lulu sempre disse: cuidado para não acreditar na narrativa da memória e anular o real.  Aqueles azulejos não viam água há décadas - você pode me dar um copo d'água? - você só quer o resumo da ópera, né? é  seguinte: eu não sei. - as cortinas arrebentaram quando a gente tentou abrir. tecido podre. o mofo, em espanhol vira rançoso, talvez não exista mofo lá, subia pelas paredes e inundava o teto com o mesmo cheiro que a carne embaixo da unha da minha avó inundava a minha infância, e a piscina. - Tava todo mundo junto e a Lu se separou do grupo? A casa nasceu da pedreira. Que chora. - Quem? Ah, a Luli. Você que tem que dizer pra gente o que tá acontecendo. - Será que você poderia me trazer um copo de água? - A gente achou que não ia ter luz nenhuma e levou uma penca de vela, mas tinha. Uma luz esverdeada colada ao teto. - Não tinha luz. - A gente só acendeu a luz e entrou. - Foi um acidente, ninguém vai sentir falta daquela casa mesmo. Foram muitas gerações de uso do fruto. Vão construir um prédio no lugar, uma garagem, um shopping, uma coisa escrota dessas. - Acho que alguém trancou a gente lá dentro.  - Vocês já acharam a Lulu? - Será que você podia me dar um copo de água. Misturada, por favor. - O calor invadiu o chão, como se tivesse carvão embaixo do taco. Sinteco. Na cozinha azulejos misturados.  Dava pra ouvir a poeira da casa gritando desesperada. - Vocês acharam a Lola? Tola. Toda. O padrasto dela deve tá preocupado. Não sei qual. - As chamas escalaram a videira do centro da casa. Perto de onde sairia o elevador que comportaria cadeira de rodas. - Ela é amiga da minha irmã. A gente não se fala muito. Não falo muito. - Algum de vocês entrou naquela casa? Só a gente, né? Então por que você não acredita quando eu digo que morava alguém ali! - Chame os alpinistas! - Ela entrou correndo, com raiva, socou a parede. Fogo. Tinha brigado com alguém. Terra. - Eu achava que a Lila tinha ido embora há muito tempo. Água.  - Você já ouviu de perto o barulho que fogo vai quando tá mastigando os móveis? Ar. - Eu senti o cheiro da minha pele queimada - Alguém gritou. Eu não sei quem. - Tudo vira pó. - Você pode pegar um copo de água pra mim? Preciso engolir uns remédios. Antioxidantes. – Eu tô perdendo o senso. E a paciência. Tô virando pó, porra.

1.1


8 quartos, sendo que num deles tinha aquela mesa que me lembrou uma que ficava no quarto da minha irmã naquele tempo antes da vizinha se jogar pela janela. Ou 9 quartos? 10 quartos, todos vazios. Na sala, um amontoado de cadeiras e um pano velho jogado por cima. Tava todo mundo ali e mais alguém. Não sei quem. Alguém que não era da gente ­ to confusa. você pode ligar pra minha mãe? ­ escuta, tinham duas cozinhas, não sei porquê. talvez antes fossem duas casas... o que isso tem a ver? ­ devia ter todo tipo de bicho na piscina, menos os aquáticos. aqueles azulejos não viam água há décadas ­ você pode me dar um copo d'água? ­ você só quer o resumo da ópera, né? é seguinte: eu não sei que porra aconteceu. ­ as cortinas arrebentaram quando a gente tentou abrir. tecido podre. o mofo subia pelas paredes e inundava o teto com o mesmo cheiro que a carne embaixo da unha da minha avó inundava a minha infância. ­ Tava todo mundo junto e a Lu se separou do grupo? ­ Quem? Ah, a Luli. Você que tem que dizer pra gente o que tá acontecendo. ­ Será que você poderia me trazer um copo de água? ­ A gente achou que não ia ter luz nenhuma e levou uma penca de vela, mas tinha. ­ Não tinha luz. ­ A gente só acendeu a luz e entrou. ­ Foi um acidente, ninguém vai sentir falta daquela casa mesmo. Vão construir um prédio no lugar, uma garagem, um shopping, uma coisa escrota dessas. ­ Acho que alguém trancou a gente lá dentro. ­ Vocês já acharam a Lulu? ­ Será que você podia me dar um copo de água. ­ O calor invadiu o chão, como se tivesse carvão embaixo do taco. Dava pra ouvir a poeira da casa gritando desesperada. ­ Vocês acharam a Lola? O padrasto dela deve tá preocupado. ­ As chamas escalaram a videira do centro da casa. ­ Ela é amiga da minha irmã. A gente não se fala muito. ­ Algum de vocês entrou naquela casa? Só a gente, né? Então por que você não acredita quando eu digo que morava alguém ali! ­ Chamas alpinistas. ­ Ela entrou correndo, com raiva, socou a parede. Tinha brigado com alguém. ­ Eu achava que a Lila tinha ido embora há muito tempo ­ Você já ouviu de perto o barulho que o fogo faz quando tá mastigando os móveis? ­ Eu senti o cheiro da minha pele queimada ­ Alguém gritou. Eu não sei quem. ­ Tudo vira pó. ­ Você pode pegar um copo de água pra mim? Preciso engolir uns remédios.